“A máquina funciona em função do fotógrafo,
se, e somente se, este funcionar em função da máquina.”
Vilém Flusser
Se, em 1929, a aquisição de um quadro de Cézanne ainda era considerada um ato audacioso, imagine o que artistas que usavam a fotografia como meio de expressão no início do século passado tiveram de empreender para que suas obras fossem consideradas legítimas no campo da arte. Uma verdadeira batalha!
Com direito a grandes heróis como Alvin Coburn e Alfred Stieglitz do grupo Foto-Secessão, e aliados de peso da vanguarda estética como Rodin, Matisse, Cézanne, Picasso, Picabia, Brancuzi, e também a feridos, os que não souberam compreender a importância do fotopictorialismo como desencadeador do intercâmbio cultural entre artistas americanos e europeus, como poucas vezes se viu, e de forma tão vigorosa.
É o maior exemplo da ligação inicial da fotografia com a pintura, ambas atraídas pelo mesmo desejo, romper os compromissos com a realidade.
O MOVIMENTO FOTO-SECESSÃO, que durou de 1902 até aproximadamente 1916, estabeleceu o direito da fotografia ser considerada “meio de expressão artística”.
Conduzido por Alfred Stieglitz (1864-1946) e Eduardo Steichen – que ficaria célebre no pós-guerra por suas fotos aéreas , estava impregnado do espírito das vanguardas européias. A começar pela própria escolha do nome “secessão”, o mesmo usado pelos vienenses da art-nouveau para declarar a ruptura com o academicismo.
Aos poucos foi-se afirmando a autonomia da fotografia, mergulhando na sua própria linguagem e afastando-se mais e mais dos cânones da pintura tradicional.
O encontro de Alvin Langdon Coburn (1882-1966) com Stieglitz acontece em Londres, em 1900, quando Coburn participa junto com outros importantes fotógrafos, Fred Holland Day (seu primo distante), Gertrude Käsebier, Clarence White e Frank Eugene, da inauguração da exposição New School of American Photography, organizada por Stieglitz para a Royal Photographic Society de Londres.
As fotos provocaram reação indignada da crítica: “Obra de jovens loucos e excêntricos...”.
Ainda assim, a exposição segue para Paris no ano seguinte, quando Coburn realiza estudos com Steichen e com o pictorialista Robert Demachy, e se junta definitivamente ao grupo em Nova York.
Este encontro dos norte-americanos Coburn e Stieglitz marca uma nova etapa na história da fotografia moderna – não só pela afirmação da sua legitimidade como arte, mas por perseguir campos estéticos até então inexplorados, como mostram especialmente as séries urbanas.
Muito do que tomamos até os dias de hoje como ícones das metrópoles industriais e da nossa visão de progresso e modernidade está lá, no livro impresso manualmente por Coburn dedicado a Nova York, com fotos como Old and New New York, de Stieglitz, ambos de 1910.
CAMERA WORK e GALERIA 291 serão duas frentes de combate para o FOTO-SECESSÃO, e a arte moderna.
Já em 1890, Stieglitz tornou-se sócio de uma empresa gráfica, a Heliochrome, mais tarde Photochrome Engraving Company.
Graças a esse empreendimento, adquiriu os conhecimentos de técnicas gráficas e de fotogravura que farão da revista CAMERA WORK, inaugurada em dezembro de 1902 e editada até 1917, uma publicação legendária na história da fotografia.
Com imagens coladas manualmente (hand-pulled), sem retoques ou manipulação nos negativos e nas cópias, a Camera Work abriga tanto imagens e monografias de integrantes do Foto-Secessão quanto de pictorialistas europeus e fotógrafos do século XIX até então pouco conhecidos, como Julia Margaret Cameron.
Conta também com a colaboraçãode escritores como Bernard Shaw e Gertrude Stein. Em agosto de 1912, por exemplo, as páginas centrais da revista trazem o artigo de Stein a propósito de Matisse e Picasso.
O alcance da Camera Work será fortalecido, em 1905, com um apartamento alugado por Stieglitz, de três cômodos, no alto de um brownstone – número 291 da 5ª Avenida.
Nasce a Pequena Galeria, ou simplesmente a 291, como ficará conhecida.
Juntas, a Camera Work e a 291 introduzirão nos Estados Unidos a arte da vanguarda europeia.
Litografias de Toulouse-Lautrec, pinturas e desenhos de Henri Rousseau, Rodin, Matisse, Cézanne, Picasso, Braque, Picabia, Duchamp – e outros que já haviam participado das inúmeras exposições sob curadoria de Stieglitz na Europa, que em um ano realizou quatrocentas exposições.
Foi na revolucionária 291 que Picasso entrou em contato com a arte africana que tanto influenciaria sua obra. Também a mecenas Peggy Guggenheim, aos vinte anos, disse ter visto o primeiro quadro de arte moderna, a imagem de Georgia O’Keeffe, com quem Stieglitz viria a se casar depois.
O EXPERIMENTALISMO RADICAL também marcou o encontro da pintura e da fotografia nas primeiras décadas do século passado.
A fotografia, sempre generosa “câmara obscura” para pintores, físicos e artistas, despertou experiências com perspectivas e um interesse cada vez maior pela busca de estruturas e formas abstratas.
Apesar da dissolução do grupo Foto-Secessão e da publicação do quinquagésimo e último número da revista Camera Work, em 1917, o espírito que reunia as principais vanguardas artísticas da Europa e da América continuará vivo.
Enquanto Stieglitz radicaliza na direção da straight photography, reivindicando imagens que explorassem pontos de vista e enquadramentos estritamente fotográficos e recursos de laboratórios fiéis à tonalidade dos materiais sensíveis à luz, como as de Paul Strand, Coburn publica suas Vortographs, uma série de fotografias de objetos repartidos em planos.
O termo faz referência direta ao vorticismo da pintura, que, embora um movimento de curta duração, de 1914 a 1917, foi a primeira expressão do abstracionismo na Inglaterra.
Estabelece diálogo com o futurismo italiano, com os pressupostos construtivos do cubismo e com o espiritualismo abstrato de Kandinsky, Klee e Marc – decisivos na busca de Coburn pela forma.
As Vortographs são obtidas por meio do “vortoscópio”, um sistema com três espelhos, semelhante a um caleidoscópio.
Esta elevação da fotografia abstrata como arte seguirá conquistando espaço com Man Ray, outro freqüentador da Galeria 291, com suas Rayografias, composições de objetos colocados diretamente sobre o papel fotográfico no laboratório, sem o uso do negativo (calótipo). Com os fotogramas e colagens de Lásló Moholy-Nagy, e o experimentalismo radical do russo Alexander Rodchenko, que marcará uma revolução também no cinema, com Sergei Einsenstein.
A crença nas POSSIBILIDADES INFINITAS DA FOTOGRAFIA no campo da arte e no fato de que ela não poderia ser condenada à mimese da realidade uniu Coburn E Stieglitz, no início do século passado, e ainda hoje voltaria a uni-los para uma nova batalha se a desconfiança recaísse sobre o futuro da fotografia digital e da arte.
Reproduzindo Coburn no seu The Future of Pictorial Photography, em 1916 :
“Se não nos é possível ser “modernos” com a mais nova das artes, faríamos melhor enterrando nossas caixas pretas, e voltar a riscar com um osso pontiagudo à maneira dos nossos remotos ancestrais”.
Kikyto Amaral
São Paulo, 21 de julho de 2008